"A literatura salva e ajuda-nos a fintar a morte"
Há mistério nos seus contos, a começar por O Sorriso de Mona Lisa. Porquê este título?
Achei-o chamativo por ser um nome que toda a gente conhece. Imaginei uma capa que fosse buscar a imagem do quadro, aquele sorriso de homem e de mulher, ambíguo que não vingou.
Consegue escolher um conto?
Do primeiro núcleo escolheria o primeiro do livro, A Assinatura, porque se constrói a partir de factos reais, desconhecidos para muitos, e que expressa bem até onde pode ir o Homem no pior de si: enquanto animal de si próprio, do seu semelhante, o que é uma coisa que sempre me desconcerta. Em Quatro Contos de Fronteira, seleccionaria Moulla, porque condensa bem enredo, dados da realidade histórica, ficção quanto baste, e um final surpreendente.
Está atento ao que rodeia o livro para além da escrita?
À medida que avança na escrita, o autor deve dar atenção a vários aspectos, a capa, o título... Tem de ter uma percepção realista do mundo editorial de hoje em que são publicados 40 a 50 títulos por dia. Tento conjugar as coisas, não descendo a um pragmatismo cruel, mas mantendo o que sou.
Realidade e ficção nos seus livros?
As duas coisas. Esse é o prazer da ficção, conseguir agir pela imaginação. Mantenho-me, na literatura, com um pé no presente, mas enredo-me por caminhos não reais e não palpáveis. Gosto da âncora do real, mas dou o salto para a invenção. Não me chega a experiência em que se detêm certos autores. Gosto de ver um escritor a reiniciar o mundo.
Há algo de fantástico na sua ficção, romance ou conto?
Claro. Acho, por outro lado, que se andarmos a contar a história das nossas vidas, entramos no negrume. Qualquer dia escrevemos de dedo apontado como o Saramago. Reconheço à escrita uma vertente social, mas gosto que a literatura nos permita o sonho, o voo. Deve ser uma janela de esperança que nos possibilite a invenção da alegria. A literatura salva e ajuda-nos a fintar o fim e a morte. Outra dádiva sua: às vezes parte-se do branco e chega-se ao arco-íris.
Passam pelos contos de Leonardo a Goya, de Klee a Hopper... A constante pictórica - que já acontecia no romance Uma Visita a Bosch - conduz a sua obra?
De algum modo, sim. Olho para um quadro e, apesar de o ver enquanto imagem do passado, tento criar-lhe um antes e um depois e entro nas personagens, imaginando-as como pessoas reais. E os quadros chamam-me, vêm ter comigo. Têm vida, não são sujeitos poéticos. No conto do quadro de Goya (O 3 de Maio), parei o tempo e salvei o homem de branco. Isso é que é fascinante na literatura: podermos trocar os fios das malhas do tempo.
É o olhar, a aura em movimento?
Algo que fica, o mundo vivido que partiu do olhar. Sempre estive ligado a esta área pelo fio do jornalismo e da crítica. Eu próprio desenho uns bonecos. Neste momento, escrevo um romance a partir da obra de Carlos Calvet e de Vítor Palla.
Segue as personagens dos quadros como um caçador?
Eu sou o caçado, a presa.
Que coisa é essa sem nome que o protagonista de A Morte de um Homem Simples busca? Que procura o escritor?
Alegria, satisfação. Essa personagem tem um olhar insaciado e acredita que é possível ultrapassar a perda, mantendo-se fiel a si próprio, à ideia de que o amor é possível ad eternum. A insatisfação faz parte da actividade da escrita. Desejo e insatisfação caminham juntos.
Coloca-se, neste conto, a questão do coleccionador tal como é formulada por Benjamin - a obra é colecção e a própria vida um caminho de coleccionador. Foi disto que quis falar?
De alguma forma, é memória que se move. Quis, por outro lado, fazer uma crítica ao meio das artes plásticas, que conheço bem, e se cinge a meia dúzia de criadores. São eles que fazem parte dos júris nos concursos, da constituições de colecções, o que dá que pensar. |